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A autoironia de Chico Buarque

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Se até a ascensão do fascismo no Brasil Chico Buarque era unanimidade como compositor (agora não é mais, pois gente ignorante se gaba de odiá-lo e de desfazer da sua genialidade), como escritor ele nunca foi aceito por todos, mesmo pelos fãs mais apaixonados. Sua literatura ora incomoda, ora claramente desagrada aos leitores, talvez pela excessiva elaboração do seu texto, talvez pela liberdade estilística que ele se dá, despreocupado em agradar.

Eu sou daquelas que mais ama do que renega. Embora critique, claro. Os primeiros romances, como Estorvo e Benjamim, não conseguiram, no meu modo de ver, combinar tão bem narrativa, estilo e história como os seguintes, principalmente Budapeste, Leite Derramado e O Irmão Alemão. Essa Gente (Companhia das Letras), lançado no fim do ano, pra mim se inscreve nesse rol dos mais recentes, um romance autoirônico, atual, bem escrito, repleto da acidez e das mazelas que enfrentamos como país no momento.

Decadência e solidão são os temas principais da narrativa desse escritor em crise de criatividade, Duarte, rima evidente para Buarque, um homem que troca a dignidade por qualquer dose de sexo sem amor. Dependente da ex-mulher, que ajudava sua obra a obter sucesso no passado, Duarte transita entre a família que abandonou - além da mulher que melhorava seus textos, o filho, que herdou dele a "vergonha" de ter o pinto virado pra direita, e não pra esquerda, como todo mundo -; a ex-mulher, que o trocou por um milionário e se mantém sua amante; e a mulher holandesa de seu amigo salva-vidas, com quem exercita mais uma vez a traição e a deslealdade.

Duarte é um Chico Buarque idealizado às avessas. Traz do autor a mania de andar às pressas pelo Rio de Janeiro, ladeira abaixo e ladeira acima, e busca (diferentemente de Chico), além de inspiração, um amigo rico que lhe empreste uns trocados pra pagar o aluguel atrasado. Decadente, endividado, humilha-se diante do editor, confiando num adiantamento baseado no passado de sucesso que não volta mais. Enquanto isso, se arrasta pra escrever o novo romance, mistura sonho e literatura, assiste a fatos do dia a dia do país, como os oitenta tiros que mataram um professor e sua família e as acusações de comunismo imputadas a algumas pessoas, entre outras aberrações e barbaridades normalizadas pelos tempos que vivemos.

Chico faz essas menções de maneira sutil, com um texto sempre brilhante e um ritmo bem construído, de modo que o mergulho no drama de Duarte se dá como num torvelinho que traga o leitor num sorvo e rapidamente o devolve impactado. E que projeto gráfico ousado! Bom demais.


Clara Arreguy, quinta-feira, fevereiro 27, 2020. 0 comentário(s).

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A história do Brasil que o Brasil não conhece

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Toda vez que eu penso que agora vou conseguir manter o ritmo e a constância de publicação neste blog acontece alguma coisa que me impede de fazê-lo. Desta vez, passaram-se quase três meses, e o motivo foi simplesmente um livro muuuuuito grande, que demorei mais de dois meses pra ler, mas que valeu a pena: Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves (Record).

O calhamaço de 950 páginas pode parecer assustador, mas à medida que se avança em sua leitura percebe-se que cada página vale ser curtida com calma e atenção. O romance narra a vida de Kehinde (Luísa, no registro cristão), uma africana sequestrada e vendida como escrava ainda aos sete anos de idade. Kehinde já havia assistido ao estupro e assassinato de sua mãe por uma tribo rival, em sua terra natal. Fugiu com a avó e a irmã gêmea, foram roubadas e embarcadas num navio negreiro, onde o segundo inferno lhe ensina que nada é tão ruim que não possa piorar.

No Brasil, a menina é comprada por um fazendeiro da ilha de Itaparica e se torna dama de companhia da sinhazinha, aprendendo a ler e escrever. Sua inteligência e perspicácia determinam os caminhos que tomará, ora por decisão própria, ora por contingências. Kehinde é estuprada e engravida. Conhece o amor, aprende a amar a liberdade e a construir possibilidades para si e para os que a rodeiam.

A história dessa mulher é longa e cheia de percalços, mas igualmente repleta de força, luta, solidariedade, aprendizado, realização de sonhos, vivências de decepção, violência, injustiça, etc. etc. Ao longo de sua trajetória, que passa pela Bahia, Maranhão, São Paulo, Rio de Janeiro e África, aprendemos boa parte da história do Brasil que não é contada na escola, a história das atrocidades cometidas contra os negros escravizados, a história da resistência, de revoltas como a dos malês, a presença e atuação dos muçurumins (muçulmanos) na Bahia, a repressão e a sobrevivência das religiões, dos ritos e mitos afros, a história de negros brasileiros que cruzaram de volta o Atlântico e tiveram negócios, riqueza, crescimento e decadência em solo africano, enfim, registros que os vitoriosos apagaram ao contar a história desse povo.

O livro requer tempo de leitura, mergulho na emoção, atenção a tantos ensinamentos. Nem a linguagem empobrecida pelo excesso de descrições e pela falta de diálogos, que impedem um ritmo um pouco mais ágil, desmobiliza o leitor. Leitura obrigatória, inesquecível, enriquecedora.


Clara Arreguy, terça-feira, fevereiro 25, 2020. 2 comentário(s).

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