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Dores sem delícia

 Jacques Fux 'entra' na mente de judeus famosos no livro 'Meshugá ...

O acaso sempre me apresenta autores excelentes pra minha coleção de paixões. Autores judeus, não por acaso, ocupam lugar especial nessa galeria. Jacques Fux é belo-horizontino, como eu, mas só agora tomei contato com sua obra, premiada e reconhecida nacionalmente. Vi um anúncio do livro Meshugá - um romance sobre a loucura (José Olympio) e fui diretamente a ela. 

Meshugá quer dizer o "doidinho" em hebraico, e o escritor pensava que escreveria alguma coisa bem-humorada sobre o tema. Qual o quê! Difícil encontrar algo mais triste do que este livro em que Fux conta a história de judeus que chegaram ao limite da loucura, em geral por motivos de perseguição, discriminação, recusa à própria cultura, falta de autoestima, enfim, por todos os fatores que envolvem o ser judeu no mundo num mundo de pogroms e holocaustos há séculos ou milênios.

Não sei o que é mais triste. Se a história de Sarah Kofman, filósofa cujo pai, um rabino, foi morto em Auschwitz, ela foi criada por uma católica antissemita e só conseguiu escrever sobre as dores da infância ao final da vida e, quando o fez, se suicidou. Se a de Ron Jeremy, judeu, baixinho, gordinho, narigudo, cujo único atrativo era um pênis gigantesco, com o qual se tornou o maior astro do cinema pornô. Se o imbróglio em que Woody Allen termina por se casar com a enteada, filha adotiva de sua ex-mulher Mia Farrow, angariando ódios e recriminações de todos os lados - e aí sofrem todos do triângulo da família... Se as de Grisha Perelman e Bobby Fischer, respectivamente gênios da matemática e do xadrez.

Talvez sejam as histórias de Otto Weininger e Daniel Burros, dois judeus que se tornaram antissemitas e nazistas, militando em organizações como a Ku Klux Klan e atuando pela destruição do povo de que se originaram, mas que se tornara sua maior vergonha. 

Há ainda textos menores, em que Fux mostra como a ciência, também ela, buscou explicações "racionais" para o antissemitismo, aí incluídos a alegada inclinação do povo judaico para o incesto, a prostituição, a masturbação e outras "perversões" sexuais, ou a alegada inclinação para o dinheiro e a ganância, como a literatura clássica não se cansa de explorar. Acusações amparadas em toda e qualquer crendice ou "pesquisa".

Jacques Fux abre e fecha o livro mostrando como ele, um escritor judeu, não supunha que se envolveria tanto nas histórias que reconta em Meshugá, e como esse mergulho na cultura e nas dores desse povo que é o seu o faria redimensionar toda uma experiência de vida. Ele, que em geral aborda com humor os temas que visita em sua literatura, não dá conta de empregar tal recurso no caso da loucura. 

Um dos mais fortes e tristes livros que tenho encontrado. Agora quero ler mais do escritor. 


Clara Arreguy, quarta-feira, agosto 26, 2020. 0 comentário(s).

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Henry Miller e a paz enganadora

 Henry Miller | O Postigo

Nunca fui leitora de Henry Miller. Conheço o escritor mais de histórias sobre ele, como o filme Henry e June, que marcou época, do que pela leitura de seus livros. Então, nessa incursão que venho fazendo em minha própria biblioteca durante a pandemia, me deparei com esse volume fininho chamado Dias de Paz em Clichy (José Olympio). Fui quente achando alguma coisa que não sei o quê. Só sei que o título é enganador e não tem nada de "dias de paz", pois se trata das aventuras sexuais do escritor norte-americano em sua temporada parisiense às portas da II Guerra Mundial.

Henry Miller, neste livro, me lembrou demais Bukowski, pela linguagem nua e crua com a qual trata o tema do sexo. O personagem e seu amigo Carl moram juntos na região de Montmartre, conhecida como reduto de artistas e boêmios, e passam o tempo à procura de inspiração para escrever e de prostitutas com quem pegar uma gonorreia, como admitem. Ou qualquer mulher de comportamento mais liberal para a época. Em meio a encontros e desencontros, o narrador tenta colocar poesia na vida carente e objetificada dessas mulheres. Tenta pagar uma refeição para uma delas, dispensando-a da "natural" contrapartida sexual. Tenta tratar com o que ele considera carinho e respeito aquelas a quem usa para satisfação de desejos imediatos e rasos.

São duas novelas curtas que se complementam, com personagens tristemente reais. Mas nem tudo é carne nesses "dias de calma". Tem também o antissemitismo evidente e incômodo para os dois amigos, o ambiente pré-guerra que antecipa o absurdo em que a vida em breve se transformará. Uma sensação de vazio para a qual esse sexo aparentemente livre serve de metáfora. Triste metáfora.


Clara Arreguy, segunda-feira, agosto 24, 2020. 1 comentário(s).

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Ela, sempre ela, Elena Ferrante

Resenha] A filha perdida | Sem Serifa Uma Noite na Praia | Amazon.com.br

Polêmicas à parte, Elena Ferrante segue sendo uma das leituras mais cativantes à disposição do leitor contemporâneo, com suas tramas e sua narrativa tão bem escritas, seu domínio da alma feminina, sua capacidade de mergulhar em questões difíceis de abordar, o que faz com ousadia e arte.

Aqui temos duas histórias ambientadas no mesmo universo, com o mesmo grau de angústia, mas tão diferentes na construção, devido aos públicos a que se destinam. "Uma noite na praia" e "A filha perdida" (ambas publicações da Intrínseca) falam de mulheres, de meninas, de bonecas, de praia. O primeiro, infantojuvenil, conta a saga da boneca Celina, esquecida na praia por sua dona, que se apaixonou por um gatinho, objeto dos ciúmes e do ódio de Celina. Entre pavores noturnos, aventuras aterrorizantes e viagens pela linguagem, a pobre protagonista acaba conhecendo um novo amigo e aliado e descobrindo o amor de sua dona. É livro infantil, mas densidade diferenciada e qualidade superior ao que se faz no mainstream do gênero.

Já "A filha perdida" é outro daqueles romances clássicos de Ferrante. A professora Leda, de seus quarenta e muitos anos, vai passar o verão no litoral e se encanta por uma jovem mãe, cuja filhinha um dia se perde na praia e tem a boneca roubada. Leda se liga a Nina, a mãe, e a Elena, a filha, enquanto revisita sua relação com as próprias filhas, hoje distantes, em outro continente, vivendo com o pai. Leda revive todo o sofrimento por que passou ao ter que fazer escolhas, como entre a carreira acadêmica e o cuidado de suas meninas, e como ousou abandoná-las em nome do encontro consigo própria.

A trama surpreendente une mães e filhas, mulheres à procura da felicidade e divididas entre o amor próprio e o amor pelo outro - no caso, filhas em busca do amor materno -, expectativas internas e externas em torno do papel da mulher na construção de um universo pessoal compatível com ética e desejo, questões de idade e poder de sedução... Elementos que Elena Ferrante explora com maestria em sua obra e que fazem dela, junto a uma escrita absolutamente deliciosa, o fenômeno maior que as polêmicas em torno de sua identidade. Seja quem for, ela é demais!


Clara Arreguy, quinta-feira, agosto 13, 2020. 3 comentário(s).

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Mistérios sem resposta


Eu me conheço e sei que, quando me apaixono por um autor, fico fissurada em ler tudo que posso dele. Descobri o Sándor Márai pelo maravilhoso As Brasas, aí li o excelente Veredicto em Canudos, e agora cheguei a A Gaivota (D. Quixote), o mais difícil deles. Por tudo, pela subjetividade da narrativa, pela tradução em português de Portugal, pelo mistério contido na própria trama, capaz de envolver o leitor em dúvida interminável.

Na Hungria do início da II Guerra, o protagonista é um funcionário de governo de meia-idade, incumbido de redigir importantes documentos. Procura-o no gabinete uma jovem estrangeira que precisa de um favor. Encantado por sua figura, ele a convida a ir consigo à ópera naquela mesma noite. De lá jantam e vão à casa do homem. 

Acompanhamos os dilemas da dupla de personagens pelos pensamentos e diálogos. A moça misteriosa, para o anfitrião, assemelha-se de tal forma à sua amada, que se suicidou por amor a outro, que, para ele, não resta dúvida: trata-se de um retorno. Ele discorre sobre o paradoxo da unicidade de cada um e da unidade de todos nós. Ela lhe conta sua história, em que as lacunas só dão margem a mais interrogações. Algo há. 

Por trás de tudo, a guerra que se inicia e que joga o mundo num torvelinho. Será ela reencarnação, alma gêmea, espiã, fantasma? Será ele louco, alucinado, paranoico? Pra onde caminha tal relação? Impossível ou inevitável?

Se a narrativa mais confunde que esclarece, o texto de Sándor Márai novamente enche os olhos do leitor. Destaco a descrição que faz do beijo de forma que nunca li antes:

"beijo porque, no fundo da vida humana, apenas se encontra o beijo, e porque com o beijo é que os corpos conseguem expressar aquilo que procuram durante uma vida inteira; o beijo porque, entre homens e mulheres, as palavras são supérfluas. O beijo aconteceu por ter chegado o momento certo e inevitável em que tudo o que podia ocorrer sem o beijo não teria sentido nenhum. Esse gesto ávido e inevitável, esse encontro entre duas epidermes secas, fora dos hábitos e impulsos e ritos, essa mordidela dócil, esse gesto carnívoro domesticado, que o ser humano preserva nos nervos e nos lábios como recordação de algo que no início dos tempos e da vida era temível, sangrento e mortal"...

Clara Arreguy, sábado, agosto 08, 2020. 0 comentário(s).

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