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Ferrante engrandece a literatura

A gente dá voltas e mais voltas e acaba retornando a um debate sem fim: Elena Ferrante e sua obra. Se ela é ela ou Domenico Starnone (duvido), se ela só não gosta mesmo de aparecer, se ela é a companheira do Starnone que criou esse pseudônimo que contribui para o sucesso da escritora, não importa. Importa apenas a obra. E nunca vi ninguém contestar a qualidade da literatura dessa italiana que virou febre. Pudera! Os milhões de exemplares vendidos da sua tetralogia napolitana comprovam como as pessoas se apaixonaram pela escrita de Ferrante e por seu universo, pelas amigas geniais e suas batalhas pessoais e políticas, por Nápoles, pela Itália, pelas reflexões que ela conduz.

Seu novo romance, A vida mentirosa dos adultos (Intrínseca), lançado com suspense, pré-venda e o estardalhaço que tudo de Ferrante movimenta, decepcionou muitas pessoas das minhas relações. "Esperava mais" foi um comentário que ouvi desde que o livro começou a ser lido. De minha parte, não esperava nada, a não ser uma história bem contada, e obtive isso com fartura, a mesma que encontro em todo livro dela que leio. As questões que ela aborda, da maneira como o faz, não sei para as outras mulheres, mas para mim são conhecidas e vivenciadas e novamente me tocaram na razão e na emoção.

A narradora, Giovanna, quando menina, ouviu do pai que estava ficando feia e amarga como a tia. Inteligente, inquieta, só mesmo indo atrás da tia para conferir do que o pai falava. A busca pela própria identidade, inclusive visual, uma questão que afeta tantas mulheres, como eu, que a vida inteira questionam modelos e padrões familiares, de tempo e moda, mexe no caldeirão de inseguranças e dúvidas que pavimentam o crescimento de Giovanna. Quem sou eu? A quem saí? Trago em mim um mal intrínseco, herdado do sangue da minha tia má?

Mas a entrada em cena da tia má promove novas revoluções no emocional da jovem, porque é ela que a manda abrir os olhos e conhecer melhor os pais. Não, ninguém é santo, ninguém é perfeito, e Giovanna descobrirá, com dor, que a vida dos adultos é um teatro de mentiras e enganação. E que nem a tia é bruxa ou fada, mas sim uma mulher com toda a força e a vulnerabilidade que isso implica. Lá vai Giovanna aprender a crescer, a conhecer o amor, o sexo, a busca da verdade, do consolo diante de um mundo real implacável. 

Elena Ferrante trata de tudo isso e muito mais - como política, religião, ética e tantas questões de fundo - enquanto conta, com a simplicidade refinada de sua prosa, uma história familiar aparentemente banal. Não, nada é banal. Seja ela quem for, Elena Ferrante é grande e engrandece a literatura a cada novo romance que lança pra nós, seus sedentos leitores. Obrigada, escritora misteriosa!

 


Clara Arreguy, terça-feira, setembro 29, 2020. 1 comentário(s).

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Torto Arado, um romance imprescindível

 

Itamar Vieira Júnior na discussão do nosso Clube de Leitura Arco-Íris 

Ainda entre os semifinalistas do Prêmio Oceanos, uma demonstração do alto nível da disputa este ano é Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, que já venceu o Prêmio Leya e segue fazendo sucesso por onde passa. Não é pra menos. Nesse seu romance de estreia, que levou anos escrevendo, o autor baiano se esmera em criar uma história, uma ambientação e uma linguagem raras no cenário da literatura brasileira - ainda que cada vez menos raras, felizmente. 

A cultura quilombola é o centro da narrativa. Duas irmãs, Bebiana e Belonísia, filhas do líder religioso de uma comunidade rural no interior da Bahia, são as principais personagens e os fios narrativos da trama. Mas as histórias do pai, da avó, dos vizinhos, dos antepassados, estão todas ali, compondo o tecido de trama forte e delicada de Torto Arado. Arando a terra fértil de um Brasil profundo, formado por descendentes de escravizados que herdaram não a liberdade, mas a servidão, similar à escravidão. 

No sertão onde nascem, crescem e tomam consciência de si Belonísia e Bebiana, a terra é do latifundiário e os trabalhadores não podem nem construir casas de tijolos. A produção tem dono, e não são os que põem a mão na massa. As mulheres não têm voz, real ou metaforicamente, e quando têm é à força de facão. O novo tempo que chega traz o primo, o homem novo, que costura na subserviência do passado uma ponte feita do despertar de luta por direitos. Caminhos de mais violência, de escancaramento do lugar das coisas - classes, corpos, vozes. 

O livro de Itamar Vieira Júnior é de uma escrita tão linda que muitos leitores se perguntam como um escritor homem apreende assim a alma da mulher. Resposta: sendo o grande escritor que é. Torto Arado é um romance imprescindível pro Brasil, pra literatura, pro futuro de valorização e espaço pra nossa história e pra nossa cultura. Precisa e merece ser lido, premiado, divulgado. Que venham novos romances de Itamar Vieira Júnior, com seu talento e o frescor temático e estilístico, poético e político, que traz para a produção contemporânea.



Clara Arreguy, quarta-feira, setembro 23, 2020. 0 comentário(s).

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A prosa elegante e irônica de Margarida Patriota


Margarida Patriota, para nós de Brasília, é sempre motivo de orgulho. Além da grande escritora que é, atua também como tradutora, mestra, militante cultural - apresenta um tradicional programa de rádio, o Autores e Livros, que há décadas ajuda a difundir a literatura pelos quatro cantos do país. Por tudo que ela faz e representa, por ser a figura elegante e culta que é, não nos causou surpresa sua presença entre os semifinalistas do prestigiado Prêmio Oceanos, com o romance Cárcere Privado (7Letras). E ao lado de nomes como Chico Buarque, Maria Valéria Rezende, José Luis Peixoto, Mia Couto, Milton Hatoum e tantos outros gigantes (como ela).

Autora de romances e histórias para várias faixas de público, em Cárcere Privado a escritora brasiliense (por adoção) tece uma narrativa tensa e densa sobre uma mulher que prende e subjuga a prima (Mara Dália) que a atormenta e faz infeliz durante toda a vida. Por fora, mantém a rotina, o cigarrinho do meio da manhã na prosa com o porteiro, as relações cordiais com a vizinhança, a pose de pessoa sensata e solidária. Por dentro, um vulcão de mágoas e traumas dados pelas perdas do passado e pelos fardos de toda uma vida.

A personalidade da narradora é deliciosamente bem construída pelo texto irônico e culto de Margarida Patriota. Como escreve bem! Como entrelaça as pequenas coisas do cotidiano com os grandes dilemas do ser humano! Junto a personagens como Catanduva, Vinhadalhos e a família coreana, e situações como a visita ao Vale do Amanhecer, ela expõe uma Brasília real, em meio a um enredo que aos poucos aponta a desagregação mental e emocional da protagonista. O mergulho é tão profundo que chega a plantar no leitor a semente da dúvida: será que Mara Dália existe mesmo, ou será que o inimigo, torturador e torturado, não habita dentro dela própria?  

Uma investigação criminal surreal contribui para o cruzamento de todas as possibilidades, do realismo ao delírio, por meio dos depoimentos de cada um dos personagens envolvidos (ou não) na trama do crime. E vai assim até o fim. Um romance de fôlego de leitura vertiginosa e de fruição inesgotável pela qualidade do texto da escritora. Que o Prêmio Oceanos já reconheceu só de nomear como semifinalista, mas que pode muito vencer, por todos os seus méritos.


Clara Arreguy, terça-feira, setembro 15, 2020. 4 comentário(s).

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