A polêmica vida de um herói
Embora os prêmios não digam exatamente a qualidade de cada
escritor, algumas premiações dão uma boa medida da estatura do artista. É o
caso do Nobel de Literatura. Mario Vargas Llosa tem obra tão consistente que
nem sua investida na política, nos anos 1990, quando perdeu as eleições
presidenciais peruanas para Alberto Fujimori, concorrendo como representante do
neoliberalismo, empanou seu brilho.
Seu novo romance, O
sonho do celta (Alfaguara, 392 páginas, R$ 47), saiu junto à conquista do considerado
maior prêmio literário do mundo, concedido pela Academia Sueca, em 2010.
Trata-se de nova investida na pesquisa histórica, nos moldes de trabalhos seus
como A guerra do fim do mundo (este
sobre o conflito de Canudos, no Brasil) e A
festa do bode, sobre a República
Dominicana.
Em O sonho do celta,
estão em foco a personalidade heroica e controversa do irlandês Roger Casement
e, como pano de fundo, a colonização da África e da Amazônia. Casement era um inglês
idealista que, aos 20 anos, no final do século XIX, foi para o Congo pensando
levar civilização e religião cristã. O que viu por lá – exploração,
escravização, assassinatos, torturas, atrocidades de todo tipo cometidas pelos
patrões da extração da borracha – fez dele um bravo defensor da população
africana. Seus relatórios correram mundo, inspiraram movimentos de combate à
escravidão. Depois de muito trabalho e denúncias, assumiu o cargo de cônsul
britânico.
Na volta à Europa, Casement identificou a luta dos africanos
com a dos seus conterrâneos irlandeses e passou a não mais se considerar
inglês. Assumiu a ideologia de libertação da Irlanda do jugo do Império. Mas se
manteve no posto diplomático, de modo que, novamente encarregado pela Coroa,
veio para a América do Sul investigar denúncias de exploração dos indígenas na
Amazônia peruana. Viveu no Brasil, em Santos, Rio de Janeiro e Belém, mas essas
passagens não são exploradas no livro.
Em Iquitos, no Peru, Casement comprou nova briga de porte,
desta vez contra os exploradores da borracha na selva amazônica. Índios
escravizados, torturados e mortos, ao lado da venda de meninas e mulheres para
exploração sexual, são a rotina que ele vê e denuncia. Novo relatório
escandaliza o mundo “civilizado”, os religiosos e militantes em defesa dos
direitos dos indígenas.
Depois disso, maduro e cheio de problemas de saúde, o cônsul
britânico já condecorado e feito “Sir” torna-se militante irlandês, assume os
movimentos de defesa da língua gaélica, da cultura celta e da libertação de seu
povo. Mas comete seu maior erro: em pleno I Guerra Mundial, crê que a Alemanha,
inimiga da Inglaterra, seria aliada da Irlanda. E vai para Berlim negociar com
o comando alemão o envio de armas e munição.
Preso na volta, durante o Levante Irlandês de 1916, é
condenado por alta traição. Para piorar sua situação, outro escândalo: Casement
era homossexual, mantinha relações com jovenzinhos musculosos e as registrava
num diário secreto. Tudo isso vem à tona para desmoralizá-lo diante de uma
sociedade moralista e repressora.
A personalidade heroica, sua luta em diversos frontes e suas
controvérsias políticas e comportamentais fazem de Roger Casement um personagem riquíssimo, e de O sonho do celta mais um romance de
Vargas Llosa a ser sorvido com paixão.
(Publicado na intranet do MDS)
Clara Arreguy, quarta-feira, janeiro 25, 2012.
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