A música de Milton Nascimento
No livro "A música de Milton Nascimento", Chico
Amaral comenta que a primeira canção que ouviu do artista foi "Beco do
Mota" (Milton e Fernando Brant, do disco de 1969). Coincidência com minha
experiência pessoal, pois a primeira que ouvi também foi "Beco do
Mota". A diferença é que o autor, compositor e instrumentista ouviu-a
cantada numa mesa de bar em Belo Horizonte, enquanto comigo foi ainda mais
emblemática: passávamos no próprio Beco do Mota, eu e colegas do Centro
Pedagógico da UFMG, numa excursão promovida pela professora de História,
Beatriz Ricardina, auxiliada pelo seu estagiário no curso, Flávio Sampaio, que
pouco depois, liderança do movimento estudantil em plena ditadura, se suicidou.
Depois de ouvir aquele canto vindo do jovem que trocaria a
empolgação pelo desespero, seria de novo "aplicada" pelo meu irmão,
Tostão (José Henriques Maia Filho). Ele queria que eu trocasse pelo Clube da
Esquina o pop rock norte-americano que me embalava a adolescência nos anos
1970. Não troquei, mas, ainda em meados daquela década de sonhos e lutas,
descobri e caí de paixão por Milton e sua turma. O LP duplo que carregava o
nome do movimento, grupo, escola, tendência, seja lá o que fosse o Clube da
Esquina, virou hino, assim como os que vieram antes e depois: o disco de 1969,
que a gente chamava de "Diamantina" por causa do desenho da igrejinha
na capa, o "Courage", o "Milton", o "Gerais", e
por aí afora.
Quando soube que Chico Amaral estava preparando um livro
sobre a música de Milton Nascimento, todas essas lembranças me vieram com a
certeza da função formadora que essa história musical teve, não apenas sobre
mim, mas com força sobre toda uma geração. E isso não se limitava a Belo
Horizonte ou a Minas Gerais. Uma vez, em viagem a São Paulo para um encontro de
estudantes, reunimos um grupo de colegas de vários estados para assistir a um
show de Toninho Horta, e pude comprovar como o guitarrista, além de Lô Borges e
Beto Guedes, era adorado por toda a galera da época.
Milton não só comandava o "movimento", como sempre
foi o mais genial, brilhante, iluminado, talentoso deles. Sempre foi um compositor
inclassificável – permeia o livro uma tentativa de enquadrá-lo, feita pelo
autor e pelos outros entrevistados, músicos, amigos, parceiros, gente que
influenciou e foi influenciada por ele, mas que não consegue defini-lo ou
responder à pergunta: de onde vem tudo isso?
Cantor de recursos inigualáveis. Letrista sensível. Instrumentista
do violão, do baixo, do piano, da sanfoninha, que faz misérias com a voz, como
se ela fosse um instrumento a mais, ou vários, ou muito mais que isso. No
livro, Chico Amaral analisa, acompanha a evolução da obra, as melodias, as
harmonias, os arranjos, se detém em aspectos técnicos que às vezes deixam o
leitor leigo boiando, mas que mesmo assim impressionam e que servem – e como! –
para estabelecer uma conversa com outros músicos, sobre um assunto que tanto os
mobiliza e do qual pouca literatura trata. Mas os comentários técnicos não
perturbam a leitura leiga. Eles apenas ilustram a profundidade da investigação
buscada pelo autor.
A maior parte de "A música de Milton Nascimento" é
ocupada por uma deliciosa entrevista em que Chico busca de Milton respostas:
como foi, onde, quando, com quem? O que explica isso e aquilo? É claro que nem
tudo obtém resposta, mas para tudo há um caso engraçado, delicioso. Uma
conversa de duas inteligências que se respeitam e se entendem. Milton, tímido,
mineirão, em relações malucas, engraçadas, com um Vinicius de Moraes todo
solto, um Tom Jobim todo social, uma Elis Regina toda estrela (no bom sentido),
mais um time brasileiro (Eumir Deodato, Agostinho dos Santos, Chico Buarque,
Naná Vasconcelos...) e outro internacional sem par (Mercedes Sosa, Wayne
Shorter, Herbie Hancock, Paul Simon, Jon Anderson, Peter Gabriel, James
Taylor...).
Fora essa timidez (ou mineirice) que lhe aconselha discrição
na hora de se aproximar de ícones da música, outro aspecto que sobressai é a
extrema generosidade de Milton na relação com os pares, parceiros, amigos. Um
jeito franco de trazer junto o que é bom, abrir espaço, sem conter o elogio,
sem recear jogar luz sobre quem está vindo. A qualidade de agregador ressaltada
pelos entrevistados. A capacidade de, mesmo sendo um caso único como criador,
nunca estar sozinho, nunca prescindir da amizade, do coletivo.
Além dos textos analíticos e de muitas fotos, o livro traz um
ótimo prefácio de Tárik de Souza; um quadro disco a disco do que o autor
considera os principais cânones da criação de Milton; um capítulo sobre os
letristas – entre os quais ele comparece, parceiro que é na canção
"Pietá", que dá nome ao CD de 2002, junto aos principais, Fernando
Brant, Márcio Borges, Ronaldo Bastos; entrevistas com os músicos Wagner Tiso
(sem o qual não haveria Milton Nascimento como o vemos hoje, pois os dois
nasceram e cresceram juntos, como artistas, em Três Pontas, Alfenas, Belo
Horizonte e no mundo), Nivaldo Ornellas, Nelson Ângelo, Tavinho Moura e Amilton
Godoy; e 14 partituras transcritas e comentadas por Chico Amaral, outro brinde
especial para leitores músicos.
Completa a edição um DVD assinado por Tomás Amaral, filho do
autor, que acompanhou a conversa entre Chico e Milton, registrando passagens
divertidas – quais não são? – e pontuando aspectos importantes ressaltados pelo
estudo da música de Milton: a relação com a cultura negra, com os índios, com
Naná Vasconcelos, com Elis Regina... O vídeo comenta e ilustra o livro.
"A música de Milton" é para ler cantando, ouvindo
e reouvindo músicas que fazem a cabeça dos brasileiros desde os anos 1960.
Atende a fãs ou não de um artista magno da cultura brasileira, da cultura
universal desse tempo em que prolifera tanta banalidade. Um artista que foi
considerado difícil, mas que já conquistou seu lugar no coração do povo que ele
tanto ama e tão bem retrata.
Clara Arreguy, quarta-feira, setembro 04, 2013.
______________________________________________________